domingo, 24 de abril de 2016

OUTROS CONTOS

«A Dor», por Fialho de Almeida.

«A Dor»
Conto de Fialho de Almeida

779- «A DOR»

 Quando o último orango deu origem ao primeiro homem, e esse homem chegando à virilidade pôde  desfrutar a grandeza da indomável força do seu pai, domada pela bondade hilariante da sua luminosa inteligência, fez um dia a si próprio esta pergunta:  

— Em que difiro eu daquele carrancudo ser que não fala  senão por guinchos e só por contracções grotescas se exprime, que para a alegria tem um grito e um urro para a cólera, que vê morrer os filhos e fugir-lhe a esposa, sem que o invada este desconsolado entorpecimento que eu sinto se não remedeio o mal, e se para o que me cerca não encontro explicação?

Ele caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pela nodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciços das florestas palpitantes de ninhos, pisando sem remorsos as corolas mais purpúreas e os cálices mais olorantes, e não vendo na vastidão opulenta e na  cromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais que a rede em que descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suas vítimas!

É das diferenças superficiais de estrutura  — de eu estar nu e ele vestido de pêlos, de ele ter cauda e eu não, de os seus pés terem o feitio das suas mãos  preênseis, enquanto as minhas plantas se espalmam pela asperidão das marchas a que as submeto — é das diferenças aparentes de organismo  que nascem estas discordâncias de natureza — nele a secura, a ferocidade, o egoísmo e a  inconsequência — em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance de vistas que me perturba, a previsão sagaz que me aconselha, e esta comoção sem origem que se entorna no meu corpo, e me tortura ou me entusiasma, conforme provém de uma necessidade satisfeita, ou conforme provém de um contratempo inesperado?  

E como se interrogava em voz alta, no meio dos castanheiros que as trepadeiras vestiam em amplexos concupiscentes nas suas couraças de folhas, viu surgir, dos rochedos negros em que pousava, o velho deus das selvas, alta figura cingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos e vasta  cabeleira de relvas verdejantes.

— Abre a cabeça do teu filho — disse o deus.  

O homem tomou o machado de sílex, chamou seu filho e fazendo-o ajoelhar fendeu-lhe o crânio de um só golpe.

— Essa caixa de osso que partiste é como a casca lenhosa de certos frutos  tropicais de que te alimentas. Partida a casca, esses frutos revelam a polpa delicada, de extraordinário tecido e esquisito sabor.

— Guarda  esse fruto — disse o deus. E após, com império: — Abre a cabeça do teu pai! — ordenou-lhe. O homem encontrou na toca do grande baobabe o velho orango que lhe dera o ser, acocorado e trôpego, roendo talos. Deu-lhe as boas-noites, pediu-lhe a bênção como de costume, e, quando o orango lhe estendia  a  mão lanugenta, sentiu na cara o gume do machado que lhe separava o crânio em duas metades.

— Extrai-lhe o fruto — disse o deus, e o homem obedeceu.  

— Bem — disse o outro.

E apontando a cada um dos cérebros desnudados:  

— Este é o cérebro do teu filho, este o do teu pai. Vês que é maior o do pequeno que o do velho, não vês? Agora segue com a tua unha estes arabescos misteriosos que sulcam a polpa arrancada ao pequeno. Eles desenham o quer que seja de legenda em hieróglifos: é a buena-dicha da espécie humana. São as circunvoluções, que mal se esboçam no cérebro do orango e  que os teus levarão mais e mais profunda e profusamente impressas. Até o teu pai, o cérebro era alguma coisa tosca como o granito; de ti por diante ele lapida-se, depura-se e modifica-se — é a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa na luz, dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos  recessos dos instintos que herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à utilidade, pela cultura a  que tu mesmo os forçarás. Corta-os ambos em pedaços e examina-os bem. São da mesma matéria,  têm idêntica forma e parecem do mesmo valor. Mas um é o ferro bruto que o mineiro destila do filão recôndito, o outro é o ferro dotado de propriedades magnéticas. Podes chamar àqueles carvão negro e torvo, se tiveres olhado neste diamante lapidado, que cintila pelos engastes das tuas órbitas como se ardesse vivido na coroa de um rei.

— Compreendo! — disse o homem, pensativo.  

— Olha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. Cada polpa se me afigura formada de lóbulos ou esferoides. É como um continente dividido em nações pelos grandes rios, ou um país repartido em distritos, pelas grandes estradas reais. Cada distrito é a potência que rege alguma determinada função do corpo — são as bossas. Há a bossa da memória, a bossa da inteligência, a bossa da luxúria, a da gula...

E, apontando cada  proeminência, o deus chamava-as pelos seus nomes. Algumas, que eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, ou positivamente não existiam. Em compensação, o cérebro do bruto tinha  noutras um desenvolvimento colossal a respeito do pequeno, o deus fazia-as  comparar miudamente, uma a uma.

—  Todas as que presidem à direcção de necessidades animais, instintos ou apetites, são consideráveis, no teu pai — dizia ele ao homem. — Todas as que se referem ao intelecto são de surpreendente grandeza no teu filho. Eis porque buscas alguma coisa mais na vida que a reflexão do teu estômago se tens fome, que a ingestão de água corrente se tens sede, que o repouso se tens sono, e o coito brutal se a virilidade do teu sexo faz explosão ante a fêmea que passa, serva obediente da tua crueldade ou dócil instrumento da tua lascívia!

 Desse instinto, que a natureza institui para povoar os seus continentes e os seus mares, encher de rumor as florestas.

Faz notar Gratiolet que as circunvoluções dos mais rudes primatas são como o esquema das circunvoluções do cérebro humano e de cardumes as águas, tiraste tu os efeitos mais doces, as sinfonias mais límpidas, os mais castos trenos e as mais cintilantes volatas.  

Chamaste-lhe o amor, e cristalizando o amor transfizeste-o na  adoração. À fêmea escrava quebraste as algemas, não consentindo que os seus pés sangrassem, como os teus rudes pés de lutador, nos abrolhos da selva e nos espinhos da maledicência. Da tua rude cabana fizeste um templo, da tua fé um lampadário, uma cúpula da tua religião e da mulher o teu deus. No santuário do teu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu de esplendores místicos a família e a tua alma. Pela adoração domaste a tua força, aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para os maus, justiceiro, generoso e valente! Estas qualidades deve-las à tua inteligência,  fluido singular que emana deste lóbulo —  e apontava — e te  destacou dos teus antepassados. Por essa faculdade, dominarás os elementos e os animais, serás rei e senhor, porque o teu braço obedecerá  sempre à tua cabeça. Cada geração receberá da anterior um património de ideias adquirido,  entregando religiosamente à que lhe suceder, acrescentando pelos seus esforços esse património sagrado e inviolável. A tua ambição será satisfeita, descansa.

— E serei eterno? — disse o homem, tremendo àquela ideia. 

—  Na história.
  
— Na vida! Que me importará a história? Se poderei viver assim sempre, dominando mares e povos,  e experimentando cá dentro esta plenitude de seiva que extravasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias? 

— Não! — disse o deus com voz profunda. — Morrerás!  

— De que me serve então tudo isto? — exclamou ele, contraindo a face serena, que uma graça  infinita deificava. E erguendo os  braços desesperado caiu a chorar a mesquinhez da sua condição. O velho deus sorria. 

— E qual a bossa que no cérebro do meu filho corresponde a este horrível veneno que a tua palavra me faz beber? 

O deus apontou-lha, dizendo: 

— Esse veneno chama-se a Dor e nunca envenenou o teu pai. 

— Faz-me então voltar à nativa bruteza dos meus — disse o homem. — Prefiro a inconsciência rude do orango, a essa inteligência que, iluminando-me a vida, me faz dela um ergástulo, e onde não poderei fazer um passo, bom ou mau que seja, sem que este tribunal interior, incorruptível e soberano, me detenha se vou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me julgar do que eu fizer e para me castigar a toda a hora. 

A voz do deus bradou: 

— Jamais!
  
E desde então esse animal vaidoso, julgado o mais perfeito e o mais livre dos seres vivos, tornou-se no miserável escravo que eternamente geme sob o chicote do seu verdugo — esse verdugo que se chama: o Pensamento. 

Fialho de Almeida

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