sábado, 31 de maio de 2014

POEMA DE WALT WHITMAN

31 de Maio de 1819, nasce o poeta norte-americano Walt Whitman, autor de «Leaves of Grass». Consultar por aqui- «Walt Whitman- Vida e Pensamento». Publica-se poema muito forte de Walt Whitman, cuja leitura remonta à minha adolescência, e que me tocou especialmente!
Poet'anarquista
Walt Whitman
Poeta Norte-Americano

UMA MULHER ESPERA POR MIM

Uma mulher espera por mim, ela tudo contém, nada falta,
No entanto, tudo ficou faltando se o sexo faltou, ou se o orvalho do varão certo estivesse faltando.

O sexo contém tudo, corpos, almas,
Significados, experiências, purezas, delicadezas, resultados, promulgações,
Canções, mandamentos, saúde, orgulho, o mistério da maternidade, o leite seminal,
Todas as esperanças, benefícios, doações, todas as paixões, amores, belezas, deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses seguiram pessoas da terra,
Estes estão contidos no sexo como partes de si mesmo e justificativas de si mesmo.

Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura a delícia do seu sexo,
Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura as suas.

Agora vou dispensar-me de mulheres frias,
Vou ficar com ela que espera por mim e com aquelas mulheres que são apaixonadas e me satisfazem,
Vejo que me compreendem e não me negam,
Vejo que são dignas de mim, serei o marido vigoroso de tais mulheres.

Elas não são em nada menos do que eu,
Têm a face curtida por sóis luzentes e o sopro dos ventos,
A sua carne possui a velha divina maleabilidade e energia,
Sabem como nadar, remar, cavalgar, lutar, atirar, correr, golpear, recuar, avançar, resistir, defenderem-se,
São irrevogáveis quanto a seus direitos - são calmas, claras, seguras de si próprias.

Trago-as para perto de mim, vocês mulheres,
Não posso deixá-las ir, faria bem a vocês,
Estou para vocês e vocês estão para mim, não apenas para o nosso bem, mas para o bem de outros,
Envoltos em vocês adormecem os maiores heróis e bardos,
Recusam-se a despertar ao toque de qualquer homem, a não ser eu.

Sou eu, mulheres, faço meu caminho,
Sou duro, amargo, grande, indissuadível, mas amo-as,
Eu não as faço sofrer além do necessário para vocês,
Eu verto a substância para encetar filhos e filhas aptos para estes EUA, pressiono com o músculo rude e lento,
Eu me abraço efetivamente, não escuto súplicas,
Não ouso me afastar até que deposite o que, há muito, estava acumulado dentro de mim.

Através de vocês faço escoar os reprimidos rios de mim mesmo,
Em vocês contenho mil lágrimas progressivas,
Sobre vocês eu enxerto os enxertos do mais amado de mim e da América,
Os pingos que destilo sobre vocês farão crescer moças impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,

As crianças que eu gerar sobre vocês hão de gerar crianças por sua vez,
Hei de exigir homens e mulheres perfeitos do meu consumir amoroso,
Espero que eles se interpenetrem com outros, como eu e vocês nos interpenetramos agora,
Vou contar os frutos das ejeções abundantes deles, assim como conto os frutos das ejeções abundantes que eu agora dou,
Vou aguardar as colheitas de amor, desde o nascimento, vida, morte, imortalidade, do que planto tão amorosamente agora.

Walt Whitman

CARTOON versus QUADRAS

O Melhor País para se Visitar
HenriCartoon

«O MELHOR PAÍS PARA SE VISITAR»

-Amigo portuga, pode informar
Onde há por aqui uma tourada
Com touros que sabem marrar?
Procurei, mas não achei nada…

Ó amigo, touradas por aqui
Só no Palácio de São Bento…
Os bois bravos que há por ali
São bem mais de um cento!

-E galos de Barcelos? Ouvi dizer
Que é um rico artesanato…

Nem de propósito! Pode ver
Dois à briga no Largo do Rato!!

-Já agora, se não for incómodo…
Casa de banho pró desenrasca?

Bicha, amigo!... de grosso modo:
Por cá andamos todos à rasca!!

POETA

OUTROS CONTOS - PRÉMIO CAMÕES 2014

O poeta e historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva, foi agraciado com o «Prémio Camões/ 2014.
Poet'anarquista
Alberto da Costa e Silva
Poeta e Historiador Brasileiro

«O Curupira e o Caçador», por Alberto da Costa e Silva.

«O Curupira e o Caçador»
Conto de Alberto da Costa e Silva

164- «O CURUPIRA E O CAÇADOR»

(Um conto baseado no mais famoso mito brasileiro, o protector da mata)

Um caçador perdeu-se no mato e lá ficou. Chegando debaixo de uma grande árvore, dormiu. 
Ouviu gritar. O curupira bateu nas sapopemas das árvores e gritou; tornou a gritar cada vez mais perto. Depois ouviu gritar ainda mais perto, já junto a si. Chegou o curupira junto dele, assentou-se e começou a conversar.

- Como estás, meu neto?

- Sempre bem, também.

- Ah! Meu avô! Eu perdi-me de casa,

- É possível, meu neto? Tua casa não é longe. Quando vieste de casa?

- Ontem, meu avô.

Continuaram a conversar.

- Ah! Meu neto! Eu estou com fome.

- Eu também tenho fome. Nada comi ainda hoje.

- Meu neto, eu quero comer.

- Eu também.

- Meu neto, tu me dás a tua mão para eu comer!

- Aqui está, meu avô.

Cortou a mão de um macaco, que tinha trazido da caça da tarde daquele dia, e lha deu. Pegou nela e comeu.

- Meu neto, a tua mão é gostosa, eu quero comer a outra.

- Aqui está, meu avô.

Pegou e comeu logo.

- Ah! Meu neto! É bem gostosa a tua mão. Tu me dás também o teu pé para eu comer?

- Aqui está, meu avô.

Cortou o pé do macaco e lho deu.

- Aí está, meu avô.

Logo o curupira pegou nele e comeu.

- Ah! Meu neto! É gostoso o teu pé!

- É possível isso, meu avô?

Depois pediu-lhe também o coração.

- Ah! Meu neto! Eu quero também o teu coração.

- Deveras, meu avô? Aqui está.

Tirou logo o coração do macaco e lhe deu.

O curupira pegou e comeu logo o coração do macaco. Depois ele pediu o coração do avô.

- Agora eu também quero o teu coração.

Antes que o curupira lhe pedisse outra cousa, pediu-lhe o coração.

- É possível, meu neto? Então dá-me a tua faca.

- Aqui está a minha faca.

Tomou imediatamente a faca, feriu-se, caiu e morreu. Aí ficou e ele foi-se embora.

- É bem feito que morresse.

Foi-se logo embora. Passando um ano, lembrou-se.

- Vou agora ver o curupira que morreu, para lhe tirar os dentes verdes para remédio; já deve estar podre, vou lhe tirar os ossos para bico de frechas. Foi-se logo embora. Chegando aí achou os ossos já brancos, e foi tirá-los com o machado que levou.

- Agora, com o machado, eu tiro os dentes.

Bateu logo com o machado nos dentes. Ele ressuscitou e assentou-se. O homem assustou-se bem.

- Ah! Meu neto! Estou com sede, quero água.

- Deveras?

Urinou logo no chapéu.

- Aqui está água para você, meu avô.

- Acordei agora bom, mas não sei em que ponto estávamos quando dormi. O que era, meu neto?

- Não sei.

- Agora vamos, meu neto. O que queres tu, meu neto?

- Não sei.

- Eu te dou uma frecha para tu matares caça.

- Dizes bem, meu avô.

- Então vamos.

- Vamos.

Foram para o mato e aí ele deu a frecha.

- Agora já tens uma frecha para caçar; queres ir-te embora?

- Quero ir.

- Sabes, por ventura, onde é a tua casa?

- Não.

- Então eu vou contigo para tua casa.

- Bem, meu avô, então vamos.

Chegaram perto de casa.

- Agora, meu neto, eu vou-me embora e te deixo. Quando tu quiseres, já sabes onde eu estou. Quando quiseres vai ter comigo. Sabes? Adeus! Desta frecha só tu sabes o jeito, não a leves para casa, não contes à ninguém, nem à tua mulher. Só tu sabes caçar com ela. Essa frecha é uma cobra surucucu; para matar a caça não precisa arco, basta jogá-la. Eu conto para tu saberes que ela te deixará. Bem, adeus!

- Adeus, meu avô! Agora quando eu for passear irei ter contigo.

- Bem, meu neto, eu estou sempre aí.

Depois ficou um caçador feliz; matava muito, enquanto que os outros não. Ninguém sabia como ele caçava. Diziam:

- Como é isso? Ele mata pássaro, mata caça; como nós então não matamos?

- Não sei.

- Nós vamos para o mato, caçamos e não matamos; ele vai e depressa chega, quando menos se espera.

Outros diziam:

- O que será então? Vamos vigiar como ele mata a caça.

- Vamos mandar dois meninos vigiar.

- Vamos.

Foram logo vigiar. Quando ele foi para o mato foram atrás. Foram escondidos vigiar, viram tirar a sua frecha do galho da árvore e logo foram vigiar como ele matava com a frecha.

- Já vimos onde estava a frecha, com certeza, já vimos.

Vigiaram-no. Achou logo um pássaro voando. Viram depois atirar atrás a frecha e ir ver o pássaro que estava morto no chão com a frecha ao pé.

- É assim! Já sabemos agora como ele mata caça.

Voltaram:

- Amanhã viremos para experimentar a sua frecha e ver como ele mata caça.

De manhã foram lá. Acharam a frecha; tiraram-na; experimentaram logo num pássaro que estava voando; atiraram; a frecha voou e voltou frechando um deles, que chegou a cair, morrendo logo o menino. O outro voltou e contou: "Morreu meu companheiro."

- De que morreu?

- Mordido pela cobra.

- Vamos ver.

Foram-no buscar e trouxeram o cadáver.

O dono da frecha foi buscá-la para ir à caça, mas chegando não a achou mais.

- Por onde perdeu-se minha frecha? Voltou talvez a ter com o seu dono. Agora sim, não tenho mais minha frecha! Que se perca! Talvez ele a achasse; por isso já ela voltou. Talvez a frecha voltasse e fosse ter com o curupira.

Não tardou em saber que acharam a sua frecha; que a experimentaram; que o menino foi mordido pela cobra, que morreu e que por isso ela foi ter com o curupira.

- Foi bem feito! Quem mandou bulir nela? Pensavam que era uma frecha à toa, quando era uma cobra. Assim fizeram perder-se a minha frecha, que não volta mais para mim.

Por isso o menino foi-se embora para outra terra, e fugiu com os outros parentes, que, por terem medo, se mudaram desse lugar.

Alberto da Costa e Silva

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(31 de Maio de 1656, nasce o gambista e compositor barroco francês, Marin Marais)

MARIN MARAIS - «Rondeau»

PENSAMENTO DO DIA

31 de Maio de 1960, morre o poeta e romancista russo, Boris Pasternak.
Poet'anarquista
Boris Pasternak
Poeta e Romancista Russo

Pensamento do dia…

«Os detentores do poder ficam tão ansiosos por estabelecer o mito da sua infiabilidade, 
que se esforçam ao máximo para ignorar a verdade.»

Boris Pasternak

Por aqui:-
Poet'anarquista

OUTROS CONTOS

Publica-se na rubrica «Outros Contos», em VI capítulos, «Sermão de Santo António aos Peixes»

«Sermão de Santo António aos Peixes», por Padre António Vieira.

Padre António Vieira
Sermão de Santo António aos Peixes

Pregado em São Luís do Maranhão, a 13 de Junho de 1654, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino. Revela fina ironia, riqueza nas sugestões alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e vaidades do Homem, comparando-o através de alegorias, aos peixes. 

Critica a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais "engolem" e "devoram". O alvo são os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em Portugal "acham outros maiores que os comam, também, a eles."

Censura os soberbos (=rocandores), os pregadores (=parasitas); os ambiciosos(=voadores); os hipócritas e traidores (= polvos).

"O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar."

É muito conhecido o exórdio deste sermão, que permite estabelecer a unidade e a circularidade do argumento, que volta sempre o ponto inicial, o conceito predicável: "Vós sois o sal da terra",Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
Fonte: http://portuguesonline2.no.sapo.pt/sermaointegral.htm

«Sermão de Santo António aos Peixes»
Por Padre António Vieira

I Capítulo

163- «SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES»

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!

Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.

Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.

Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.

Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.

Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.

Padre António Vieira

Amanhã, II capítulo/ Sermão de Santo António aos Peixes.
Poet'anarquista

sexta-feira, 30 de maio de 2014

«INFERNO», POR DANTE ALIGHIERI

«Inferno»
Canto I (trecho inicial)

INFERNO

CANTO I (trecho inicial)

No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que encontrei,
outros dados darei da minha sorte.

Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,

e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia.

Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;

e como náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.

(...)

Dante Alighieri

Por aqui- «POESIA - DANTE ALIGHIERI», sobre vida e obra.

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(30 de Maio de 1909, nasce o chefe de orquestra e clarinetista norte-americano, Benny Goodman)

BENNY GOODMAN - «By By Blues»

OUTROS CONTOS

«O Desejo do Pastor», POR Max Bolliger.

«O Desejo do Pastor»
Conto de Max Bolliger

162- «O DESEJO DO PASTOR»

Era uma vez um pastor que, para além de algumas ovelhas, nada mais possuía, a não ser uma flauta que ele mesmo fizera com um ramo de sabugueiro.

Não passava um dia que ele não a tocasse, às vezes alto, outras vezes baixinho, às vezes alegre, outras, triste, conforme se sentia no momento.

Ao tocar, sentia o desejo da perfeita beleza. E a esperança de vir a encontrá-la inspirava-lhe novas melodias.

Certa vez, quando voltara a tocar na sua flauta, descobriu um pássaro. Estava pousado no sabugueiro, a escutá-lo.

As suas penas brilhavam com todas as cores do arco-íris.

“Oh!”, pensou o pastor fascinado. “Aqui está finalmente a beleza que eu procuro.”Aproximou-se devagarinho do sabugueiro para apanhar o pássaro. Mas quando ia agarrá-lo com as mãos, o pássaro levantou voo e foi sentar-se no ramo de um pinheiro.

O desejo de o apanhar era tão grande, que o pastor seguiu-o.

Mas, quando chegou junto do pinheiro, o pássaro ergueu-se nos ares e partiu.
No seu lugar, o pastor encontrou um melro ameaçado por um gato.
Mal acabara de afugentar o gato, descobriu o pássaro parado na margem de um regato.
Mas quando o pastor chegou junto do regato, o pássaro levantou voo.
No seu lugar, o pastor encontrou um peixe preso numa rede.
Mal o pastor acabara de libertar o peixe, descobriu o pássaro no cume de um monte.
Ao chegar ao cume, o pássaro elevou-se nos ares e voou.
No lugar do pássaro, o pastor encontrou uma flor murcha pelo calor.
Mal o pastor acabara de regar a flor, descobriu o pássaro à beira-mar.
Mas, quando o pastor chegou à beira-mar, o pássaro elevou-se nos ares e voou por sobre a água, em direcção ao pôr-do-sol.

“Ah”, pensou o pastor, “a beleza estava a fazer troça de mim.”

Desapontado, fez-se ao caminho de regresso a casa e às suas ovelhas.

Mas, quando chegou ao cimo do monte, diante dos seus olhos abria-se uma flor maravilhosa.
No regato, esperava-o um peixe. E, no pinheiro, um melro saudou-o com o seu canto.

Então, o pastor pensou que, afinal, fazia sentido ansiar pela beleza, mesmo que não fosse possível agarrá-la com as mãos, e continuar, até ao fim da sua vida, tocando as suas melodias.

Max Bolliger

quinta-feira, 29 de maio de 2014

CARTOONS versus QUADRAS

Pogilismo

HenriCartoon

POGILISMO 
versus 
DOIS ESQUERDINOS NO RINGUE

Tortas, apostei nesse de calção rosa…
Estou a torcer pra que o gajo dê luta
E se aguente até a próxima nebulosa…
Joguei as fichas todas nesta disputa!

Calma, Fedellho… duas tristes almas!...
Não se sabe qual delas cai ao tapete,
Vamos assistindo e batendo as palmas…
Com este combate, tu nada perdeste!!

POETA

Dois Esquerdinos no Ringue
HenriCartoon

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(29 de Maio de 1967, nasce o músico britânico da banda Oasis, Noel Gallagher)

NOEL GALLAGHER'S HIGH FLYING BIRDS
«If I Had a Gun»
If I Had A Gun by Noel Gallagher's High Flying Birds on Grooveshark
Poet'anarquista

SE EU TIVESSE UMA ARMA

Se eu tivesse uma arma, eu atiraria no sol
O amor vai queimar esta cidade por você
Se eu tivesse o tempo, eu pararia o mundo e te faria minha
E todos os dias seriam os mesmos com você

Aah
Aah

Te daria o sonho de volta, te mostraria agora como poderia ter sido
Para que as lágrimas que você chorou devam desaparecer
Eu estarei do seu lado quando eles vierem para dizer adeus
Nós viveremos para achar outro dia

Me desculpe se eu falei muito cedo
Meus olhos sempre seguiram você pelo lugar
Porque você é o único Deus de que eu vou precisar
Eu estou me segurando e esperando o momento de me encontrar

Aah
Aah

Espero que eu não tenha falado muito cedo
Meus olhos sempre seguiram você pelo lugar
Porque você é o único Deus de que eu vou precisar
Eu estou me segurando e esperando o momento
Para meu coração tornar-se inquebrável pelo mar

Aah
Aah

Me deixe voar com você até a lua
Meus olhos sempre seguiram você pelo lugar
Porque você é o único Deus de que eu vou precisar
Eu estou me segurando e esperando o momento de me encontrar

Aah
Aah

Se eu tivesse uma arma, eu atiraria no sol
O amor vai queimar esta cidade por você

Noel Gallagher's High Flying Birds

OUTROS CONTOS

«A Viagem Definitiva», conto poético por Juan Ramón Jiménez.

«A Viagem Definitiva»
Conto Poético de Juan Ramón Jiménez

161- «A VIAGEM DEFINITIVA»

Ir-me-ei embora. E ficarão os pássaros
Cantando.
E ficará o meu jardim com sua árvore verde
E o seu poço branco.

Todas as tardes o céu será azul e plácido,
E tocarão, como esta tarde estão tocando,
Os sinos do campanário.

Morrerão os que me amaram
E a aldeia se renovará todos os anos.
E longe do bulício distinto, surdo, raro
Do domingo acabado,
Da diligência das cinco, das sestas do banho,
No recanto secreto de meu jardim florido e caiado
Meu espírito de hoje errará nostálgico…

E ir-me-ei embora, e serei outro, sem lar, sem árvore
Verde, sem poço branco,
Sem céu azul e plácido…
E os pássaros ficarão cantando.

Juan Ramón Jiménez
(Prémio Nobel da Literatura/ 1956)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

ZAGAR - «Eastern Sugar»

POEMA DE THOMAS MORE

«Retrato do Poeta Thomas More»
Por Hans Holbein

AQUELES NOCTURNOS SINOS

Ah, nocturnos sinos! Nocturnos sinos!
Quantas histórias sua música narram,
Da juventude, do lar, daquele doce tempo,
Quando, pela última vez, suas ternas melodias ouvi .

Já se foram aquelas horas jubilosas,
E muitos corações que, então, alegres eram,
Agora profundamente dormem dentro do tumulo.

E, assim, há de ser quando me for.
Harmoniosos, continuarão ainda repicando aqueles sinos 
Enquanto outros bardos pelas ravinas hão de andar
Vossos louvores entoando, vossos doces nocturnos sinos.

Thomas More

OUTROS CONTOS

«Serão», por Baltasar Lopes.
«Serão»
Família Adolfo Pinto, por Almeida Júnior

160- «SERÃO»

A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da ceia, mamãe arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não havia o receio de sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora tolhia-nos o medo do escuro… Tudo arrumado e rezadas as orações, mamãe e mamãe velha iam sentar-se na salinha, onde já estávamos, acomodados em bancos. A casa enchia-se de meninos. A nossa imaginação vivia apaixonadamente no mundo variado que as histórias criavam. Acaçapado ao pé de mamãe velha, o Baluca também fazia parte do serão, de orelhas caídas e cabeça pensativa, como se estivesse recordando as roncações da sua mocidade com as cadelinhas levianas que lhe davam trela.

Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita, velha pretona a quem os rapazes trocistas chamavam Camões, por lhe faltar um olho em virtude de pau-de-finado mal curado. E que lábia que ela tinha! Era um gosto ouvir-lhe referir aqueles casos todos, contos de meninos presos, a engordar, dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos que casavam com a filha do rei, rapazotinhos sabidos que tinham enganado Aquele Homem – pelo sinal da Santa Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam ao Esponjeiro tomar ordens do seu chefe, um diabo trocista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas em bichos, a agoirentar a vida da criatura.

História, história!
Fartura do Céu, ámen!

― Era uma vez uma princesa que andava a correr mundo à procura de Passo-Amor, seu noivo, mas para o alcançar tinha de furar a sola a sete sapatos de ferro:

Acorda, Passo-Amor,

há mil léguas em procura de ti…

Chegou a casa da mãe do vento, e esta escondeu-a dentro de um cancarã. Entrou o filho, muito malcriado, com grande barulho, catã, catã, e disse:

― Aqui cheira-me a sangue real…

Nós todos queríamos mais e mais histórias. A ouvir Nhá Rosa Calita o sono fugia-nos totalmente…

― Certa ocasião havia grande fome na terra. Desde dois anos o mês de Outubro não dera pinga de água para refrescar a planta, já amorrinhada do léu-léu escasso de Setembro. Um homem de Fajã de Baixo vivia na sua casinha com duas filhas, já raparigas, na vida castigada da pobreza. Vocês sabem, pobre é como cama de chão, todos lhe passam por cima. Um dia, assim que os galos deram a última pousa (tinham dormido sem cear), saiu com as filhas a furar a vida onde Deus fosse servido de mostrar a Sua misericórdia. Andou, andou, passou a Assomada do Mancebo, e ali em direitura de Fragatinha encontrou grande estendal de batata conteira num fundo de quebrada. Encheram os balaios, mas o homem, com a voz cheia de respeito, recomendou às filhas:

― Oh, minhas filhas, vocês não dêem a ninguém conta desta senhora comida!

E seguiam os pormenores da história, em que a humildade e a modéstia eram premiadas com um saco de dinheiro e a cobiça arrogante era castigada com um açoite de pau de tamarindo.

Mamãe velha dormitava na cadeira de balanço, pois, além de ser já pessoa antiga e ter o corpo queixoso, levantava-se logo assim que os galos davam a última pousa, no alvor nascente da antemanhã. Mamãe, essa, entretinha-se na sua renda de duas agulhas, cuja perfeição de acabado era muito gabada pelas menininhas luxentas da vila. Mas nós, os garotos, ficávamos despertos, de sentido cegueirado nas histórias…

Baltasar Lopes

terça-feira, 27 de maio de 2014

CARTOON versus SONETO

Inseguro
HenriCartoon

(Coincidências…)

«INSEGURO»

-Inseguro, podes chegar aqui um minuto?
Preciso de ter uma conversinha contigo,
Não podemos adiar aquele velho assunto...
Vem a mim, sabes como sou teu amigo (?)

-Ó Bosta, mas queres mesmo falar comigo??
Se é sobre o tal assunto que eu acho injusto,
Não entrego o partido nas mãos do inimigo…
Pra chegar a este lugar, foi com muito custo!

-Seguro que a partir d’ agora estás em perigo...
Muitos do meu lado, até do PSD pra ser justo!
Renuncia enquanto podes, ouve o que te digo:

Só por cima do meu cadáver, e o PS de luto!…
Agora vira as costas, não sentirás o castigo:
Zás!... muito certeiro este punhal astuto!!

POETA

OUTROS CONTOS

«As Janelas Douradas», por William J. Bennett.

«As Janelas Douradas»
Conto de William J. Bennett

159- «AS JANELAS DOURADAS»

O menino trabalhava arduamente durante todo o dia, no campo, no estábulo e no armazém, pois os pais eram fazendeiros pobres e não podiam pagar a um ajudante. Mas, quando o sol se punha, o pai deixava-lhe aquela hora só para ele. O menino subia ao alto de um morro e ficava a olhar para um outro morro, distante alguns quilómetros. Nesse morro, via uma casa com janelas de ouro e de diamantes. As janelas brilhavam e reluziam tanto que ele era obrigado a piscar os olhos. Mas, pouco depois, ao que parecia, as pessoas da casa fechavam as janelas por fora, e então a casa ficava igual a qualquer outra casa. O menino achava que faziam isso por ser hora de jantar; então voltava para casa, jantava e ia deitar-se. Um dia, o pai do menino chamou-o e disse-lhe:

— Tens sido um bom menino e ganhaste um dia livre. Tira esse dia para ti; mas lembra-te: tenta usá-lo para aprenderes alguma coisa boa.

O menino agradeceu ao pai e beijou a mãe. Em seguida partiu, tomando a direcção da casa das janelas douradas.

Foi uma caminhada agradável. Os pés descalços deixavam marcas na poeira branca e, quando olhava para trás, parecia que as pegadas o seguiam, fazendo-lhe companhia. A sombra também caminhava ao seu lado, dançando e correndo, tal como ele. Era muito divertido.

Passado um longo tempo, chegou ao morro verde e alto. Quando subiu ao topo, lá estava a casa. Mas parecia que haviam fechado as janelas, pois ele não viu nada de dourado. Aproximou-se e sentiu vontade de chorar, porque as janelas eram de vidro comum, iguais a qualquer outra, sem nada que fizesse lembrar o ouro.

Uma mulher chegou à porta e olhou carinhosamente para o menino, perguntando o que ele queria.

— Eu vi as janelas de ouro lá do nosso morro — disse ele — e vim de propósito para as ver de perto, mas elas são de vidro!

A mulher meneou a cabeça e riu-se.

— Nós somos fazendeiros pobres — disse — e não poderíamos ter janelas de ouro. E o vidro é muito melhor para se ver através dele!

Convidou o menino a sentar-se no largo degrau de pedra e trouxe-lhe um copo de leite e uma fatia de bolo, dizendo-lhe que descansasse. Chamou então a filha, que era da idade do menino; dirigiu aos dois um aceno afectuoso de cabeça e voltou aos seus afazeres.

A menina estava descalça como ele e usava um vestido de algodão castanho, mas os cabelos eram dourados como as janelas que ele tinha visto e os olhos eram azuis como o céu ao meio-dia. Passeou com ele pela fazenda e mostrou-lhe o seu bezerro preto com uma estrela branca na testa; ele falou do bezerro que tinha em casa, e que era castanho-avermelhado com as quatro patas brancas. Depois de terem comido juntos uma maçã, e se terem tornado amigos, ele fez-lhe perguntas sobre as janelas douradas. A menina confirmou, dizendo que sabia tudo sobre elas, mas que ele se tinha enganado na casa.

— Vieste numa direcção completamente errada! — exclamou ela. — Vem comigo, vou-te mostrar a casa de janelas douradas, para ficares a saber onde fica.

Foram para um outeiro que se erguia atrás da casa, e, no caminho, a menina contou que as janelas de ouro só podiam ser vistas a uma certa hora, perto do pôr-do-sol.

— Eu sei, é isso mesmo! — confirmou o menino.

No cimo do outeiro, a menina virou-se e apontou: lá longe, num morro distante, havia uma casa com janelas de ouro e de diamantes, exactamente como ele tinha visto. E quando olhou, o menino viu que era a sua própria casa!

Apressou-se então a dizer à menina que precisava de se ir embora. Deu-lhe a sua melhor pedrinha, a branca com uma lista vermelha, que trazia há um ano no bolso. Ela deu-lhe três castanhas-da-índia: uma vermelha acetinada, outra pintada e outra branca como leite. Ele deu-lhe um beijo e prometeu voltar, mas não contou o que descobrira. Desceu o morro, enquanto a menina ficava a vê-lo afastar-se, na luz do sol poente.

O caminho de volta era longo e já estava escuro quando chegou a casa dos pais. Mas o lampião e a lareira luziam através das janelas, tornando-as quase tão brilhantes como as vira do outeiro. Quando abriu a porta, a mãe veio beijá-lo e a irmãzinha correu a pendurar-se-lhe ao pescoço; sentado perto da lareira, o pai levantou os olhos e sorriu.

— Tiveste um bom dia? — perguntou a mãe.

— Sim! — o menino passara um dia óptimo.

— E aprendeste alguma coisa? — perguntou o pai.

— Sim! — disse o menino. — Aprendi que a nossa casa tem janelas de ouro e de diamantes.

William J. Bennett

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(27 de Maio de 1840, morre o compositor e violinista italiano, Nicolo Paganini)

NICOLO PAGANINI
«Le Streghe»

segunda-feira, 26 de maio de 2014

CARTOON versus QUADRAS

O Seu à Sua Dona
HenriCartoon

«O SEU À SUA DONA»

-Venho aqui fazer reclamação
E exigir um direito que é meu!…
Poleiro no Parlamento Europeu
Por fazer greve no dia d’ eleição!!

-Diga-me seu nome, se faz favor…
-Todos me conhecem, sou a São!
-O nome completo será melhor…
-Sessenta e seis % de Abstenção!!

POETA

CARTOON versus QUADRA

Super Marinho

HenriCartoon

SUPER MARINHO

-E salta Super Marinho, e salta…
Mostra a esses dois como se faz!
-Upa, upa!… vêm como fui capaz
De saltar por cima desta malta?

POETA

«AS UVAS», POR ALEXANDRE PUSHKIN

«As Uvas»
Natureza Morta com Uvas/ Van Gogh

AS UVAS

Que me não fujam as rosas
murchando co'a Primavera:
gosto das uvas em cachos
maduros ao sol da encosta —
glória deste meu val',
pendendo em brilho de pérolas,
prazer do Outono dourado:
oblongas e transparentes
como dedos de donzela.

Alexander Pushkin

Por aqui: 
Poet'anarquista

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FIDDLER'S GREEN - «I'll Tell Me Ma»
I'll Tell Me Ma by Fiddler's Green on Grooveshark
Poet'anarquista

EU VOU DIZER-ME

Eu vou dizer-me quando eu vou para casa
Os meninos não deixam as meninas em paz
Eles puxam meu cabelo, eles roubam meu pente
Mas está tudo bem até eu chegar em casa
Ela é bonita, ela é bonita
Ela é a rainha da cidade de Belfast
Ela está cortejando um, dois, três
Por favor, não me dizes, quem é ela?

Albert Mooney diz que a ama
Todos os rapazes estão a lutar por ela
Bate na porta e toque a campainha
Dizendo, oh meu amor verdadeiro, você está bem?
Ela vem para fora, branco como a neve
Anéis em seus dedos e sinos nos pés
Velho Johnny Murray diz que ela vai morrer
Se ela não tiver o companheiro com o olho itinerante

Deixe o vento e a chuva e o granizo ir altos
Neve vem caindo do céu
Ela é tão legal quanto uma torta de maçã
Ela vai ter um companheiro e
Quando ela chegar a um rapaz por si própria
Ela não vai contar a sua mãe quando ela chegar em casa
Que venham todos eles como eles vão
É Albert Mooney ela ainda ama

Eu vou dizer-me quando eu vou para casa
Os meninos não deixam as meninas em paz
Eles puxam meu cabelo, eles roubam meu pente
Mas está tudo bem até eu chegar em casa
Ela é bonita, ela é bonita
Ela é a rainha da cidade de Belfast
Ela está cortejando um, dois, três
Por favor, não me dizes, quem é ela?

The Fiddler’s Green

OUTROS CONTOS

«A Palavra Mágica», por Vergílio Ferreira.

«A Palavra Mágica»
Conto de Vergílio Ferreira

159- «A PALAVRA MÁGICA»

Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.

Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:

— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?

— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí, se faz favor. Falei por falar.

— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu.

— Faço o que posso — desabafou o outro.

 — E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo, disse:

— «inoque» será você.

Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:

— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um  «inoque».

— Que é isso de «inoque»?

— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.

Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:

— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.

Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.

Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos, unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam. Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que, «inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter dentro da palavra mais um veneno.

Como, porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia termos novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais significações. Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque», por ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no «inoque» o assassino de faca e a cróia de porta aberta.

“Inócuo” dera a volta à aldeia, secara todo o fel das discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava quando se tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do homem. Perdigão arriou:

— «Inoque» será você.

Também ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra, mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até que um dia voltou a entrar na aldeia, não já pela ponte sul que dava para a Vila, mas pela ponte norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do vagabundo:

— Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.

— Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque» reles.

E “inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na fogueira.

— Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me mata você à fome como fez a seu pai.

 Porque “inócuo” também queria dizer parricida. Então o Ramos, que passava perto, tomou a palavra excomungada nas mãos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá tinha dentro. Um cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de todos em redor. Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando do ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos. “Inócuo” era “bêbado”, ‘ladrão”, “incendiário’, ‘pederasta’, e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como “poça” ou “bolas”. Para o calão da gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo, soube-se um dia que significava ainda 'escroque', «souteneur», e mais.

A aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com o palavrão na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no dicionário a fundura vernácula da ofensa. Procurou «inoque». Não vinha. Procurou «noque». Também não vinha. Furioso, buscou à toa,  «quinoque», «moque», «soque». Nada. Quando a mãe o procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso, o rapaz declarou:

— O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que era. Mas não vem no dicionário.

— Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá! Não te importes.

— Mas que quer dizer?

— Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais coisas más. Não vejas!

Começaram então a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”, consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da injúria em linguagem correcta, sendo essa versão que instruía os autos.

— Chamou-me «noque».

— Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?

— Pois queria dizer que eu era ladrão.

E escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou “bêbedo”.

Ora um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma palmada à coxa curta, clamou:

— Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!

E admitindo que o vocábulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num dicionário recente, o último modelo de ortografia e significados. Então pasmou de assombro, perante o escuro mistério que carregara de pólvora o termo mais benigno da língua: “inocuo’ significa apenas «que não faz dano, inofensivo”. E pôs o dicionário aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou a luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos que lá não estavam.

— Nada feito — repetia o juiz. — O homem chamou-lhe, correctamente, “pessoa incapaz de fazer mal a alguém”.

— Mas há a intenção — opôs o advogado, mais tarde, quando se voltou ao assunto. — Há o sentido que toda a gente liga à palavra.

— Nada feito — insistia o juiz. — “Inócuo” é ‘inofensivo’ até nova ordem.

Então o advogado desabafou. Também ele sabia, como toda a gente culta, que “inócuo” era um pobre diabo dum termo que não fazia mal a ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de Latim do seu Padre Mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano nem sempre conseguia razões para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um pendão desfraldado no pau alto da vingança. Bernardino fora ofendido. Mas podia querer amanhã ofender e as razões serem curtas para o seu rancor. Uma palavra informe, soprada de todos os furores, seria então a melhor arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na dureza bárbara do pau. ‘Inócuo’ era uma maravilha para a última defesa da racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se todos os rancores e maldições. “Inócuo” era um benefício social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o dicionário a meter a vida na pele.

— Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.

Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos. A vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da compreensão e da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondência vernácula da injúria do «pagnon», tentou reabilitar a palavra excomungada. Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo” era um anátema verde de pus.

—  Que importa o que dizem? — clamou o heroísmo do rapaz. — Podem chamar-me «inoque» ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que quer dizer.

Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples livro impresso.

Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu, preocupado apenas com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega, para desforra integral.

Vergílio Ferreira