quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«O Quarteto dos Agostinhos», por Eveline Sambraz.

Consultar por aqui:
«OUTROS CONTOS», (1ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência).
«OUTROS CONTOS», (2ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência).
Poet'anarquista
«Chíbia Milongo»
Cabeça de Mulata, por Di Cavalcanti

76- «O QUARTETO DOS AGOSTINHOS»

(3ª Parte - Peças Soltas no Interior da Circunferência)

Chibía Milongo

(A mosca no leite)

A Chibía chegou à Vila em 1945. Vinha de Angola, mais exactamente, do sul de Angola. Da cidade de Sá da Bandeira, hoje, Lubango. Era filha de um engenheiro calipolense que administrava a linha de caminho de ferro de Moçâmedes. Uma linha ferroviária que teria mais de mil quilómetros de extensão e que ligava o porto da cidade de Moçâmedes à cidade de Serpa Pinto, hoje Menongue. Filha de pai branco e mãe negra. Mestiça, portanto. À medida que a construção da linha ia avançando para o interior do território, ela foi vivendo de acampamento em acampamento, tendo a mãe como única professora durante a aprendizagem das primeiras letras. Nos últimos tempos, antes de vir para a Portugal, já estudava na cidade de Sá da Bandeira, num colégio interno. Porém, um surto de malária que assolou essa região, decidiu os pais a enviá-la para Vila Viçosa, temendo pela vida da filha. Ficaria a viver em casa dos avós paternos, e aqui continuaria os estudos. 

Vila Viçosa/ Terreiro do Paço
Igreja dos Agostinhos e Quartel de Cavalaria

Foi assim que chegou à Vila e ingressou no colégio local. Com um feitio muito extrovertido, descarado mesmo, rapidamente fez amizades entre as colegas, e rapidamente também, passou a integrar o grupo de amigas de que trata esta narrativa. Dona de uma grande beleza, realçada pela cor morena da pele, usava o cabelo penteado com tranças muito finas, que ornamentava com pequeníssimas missangas. À sua maneira, descarada e provocante, usava, preso no tornozelo, por uma fita, um pequeno guizo que ia cantando enquanto andava.  E dizia, muito séria, “que era um costume da sua tribo, lá entre os pretos.” Sempre com a resposta na ponta da língua, muito afiada e acutilante, é também dela a expressão “mosca no leite“, referindo-se ao facto de ser a única rapariga de cor no meio das restantes alunas brancas do estabelecimento de ensino. Não foi uma aluna brilhante. Esse papel estava reservado para a Eva Potra. No entanto, nunca perdeu nenhum ano. Manifestando pouca vontade pela matéria dos estudos, sempre dizia que a História de Portugal apenas lhe interessava naquilo que se prendia com o período das descobertas dos portugueses. A forma como tinham chegado a Angola e como a tinham colonizado. Nessa parte, sempre misturava críticas com elogios. Interessava-lhe a dinastia dos Braganças, pois sendo D. João IV, natural de Vila Viçosa, assumia o orgulho que o pai sentia em aqui ter nascido também. Quanto à geografia, interessava-lhe muito mais o que se passava entre o Zaire e o Cunene, do que entre o Minho e o Algarve. Referia com frequência o facto da mãe ser filha de um chefe tribal do distrito do Cuando-Cubango, da região do Cuito-Cuanavale. Por vezes, até praguejava num dialecto desconhecido para as restantes membros do grupo. Cuanhama, assim se chamava o dialecto. E assumia com tanto orgulho os antepassados da mãe como assumia os do pai. Complexa, muito complexa, a Chibía. Foi a primeira pessoa a quem as restantes companheiras do quarteto ouviram dizer que Angola seria, um dia, país independente. Estávamos em 1945, é preciso não esquecer! No princípio da década de cinquenta, ainda o quarteto se mantinha, e todas se juntavam naqueles bailes de passagem de ano realizados no café Framar. Isso foi antes da Eva e da Chibía ingressarem na universidade e do regresso da Carmen a Espanha. A Eveline frequentava a escola do Magistério Primário em Évora. 

«Chíbia Milongo de Bessangana»
Bessangana, por Neves e Sousa

A Chibía apareceu nessa passagem de ano com um traje regional angolano, embrulhada numa capulana, que mais não era que um grande pano, de cores imensamente garridas, que a cobria desde os ombros aos pés. Fez furor, como, aliás, era hábito nela. Com as trancinhas coladas à cabeça e as inevitáveis missangas. Era a mulher mais bonita do baile. Acabaram a noite juntas, todas quatro, já a madrugada ia alta, com uma taça de champanhe a mais, fumando umas cigarradas, num daqueles bancos da Praça da República, entre o Framar e a Câmara. A conversa, está bem de ver, passou pelos tempos áureos do quarteto. Uma noite de recordações, de tristezas e também gargalhadas cristalinas. As mesmas gargalhadas cristalinas que há quase uma década vinham escandalizando algumas boas almas, conservadoras, que sempre as há, seja onde for. Foi nessa noite que a Chibía, finalmente, aceitou namorar com o Rufino. Há muito que ele a queria. O Rufino, por quem todo o quarteto teve uma paixoneta, mas que sempre tinha direccionado a sua atenção para a Chibía, conseguiu, nessa passagem de ano, que ela o aceitasse como namorado. Mas foi sol de pouca dura. Depois dele se formar como regente agrícola, profissão que nunca exerceu, e depois de enveredar por uma carreira musical, que lhe trouxe alguma notoriedade, ainda ela não tinha terminado o curso de direito, casaram. O casamento, porém, não durou muito. Depois do nascimento da filha e de aguentarem a relação durante alguns anos, a Chibía, pegou na miúda e foi viver para Angola. 

«Chíbia e o MPLA»
Independência de Angola

Imediatamente passou a dar corpo a velhas ideias e envolveu-se com um dos movimentos de libertação daquela colónia. Teve uma vida muito agitada nos anos seguintes, o que levou o Rufino a ir também para Angola afim de tomar conta da filha. Foram anos de muitas tragédias para todos eles. Ele sempre lhe prestou todo o apoio naqueles tempos conturbados. Tempos em que ela tanto estava presa, como em liberdade. E, praticamente, criou a filha sozinho. Mais tarde, muito mais tarde, já depois da independência daquela colónia, a Chibía, passou a viver com um comandante do movimento de libertação a que pertencia. Mas nunca abandonou o Rufino. Este, já doente, ainda chegou a viver em casa dela, no Lubango. E foi em casa dela que ele morreu. A Chibía morreu no ano seguinte. Foi a segunda do quarteto a desaparecer.

Eveline Sambraz

(Continuação...)

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