sexta-feira, 29 de novembro de 2013

OUTROS CONTOS

«O Tio Músico», por Orson W. Calabrese

Nota do autor: «Episódios avulso e sem importância, passados em Angola no tempo colonial.»
«O Tio Músico»
Carlos Paredes, Seregrafia de Marco Moura

32- «O TIO MÚSICO»

Foi para agradar dos pais – os meus avós –  que se mudou para Lisboa. Ele queria era continuar a ritmar com os companheiros do “N’Gola”, nos merengues e rebitas nos musseques dos arredores de Luanda. 

Cidade de Luanda, Angola (1972)
Marginal à Baía

Com muito boas notas no Liceu Salvador Correia, facilmente conseguiu entrar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Mas ele queria lá saber das medicinas, o que ele queria era ser músico. E assim que se apanhou à solta na capital do império, com dinheiro no bolso, frequentou todas as matinés do Monumental, chegando a integrar alguns dos conjuntos que aí actuavam nos domingos à tarde. Por essa altura já estava fascinado pela guitarra portuguesa e, assim, vadiou por todas as casas de fado da cidade. Acarinhado por todos, e por ser um bom companheiro, depressa arranjou quem o iniciasse nos segredos desse instrumento. Rapidamente se fez mestre.

Cine-Teatro Monumental, Lisboa (1952)
Foto Estúdio Novais e Fundação Gulbenkian

Quem diria que aquele mulato, comprido de quase dois metros, teria tanto talento para a guitarra portuguesa, instrumento que os puristas do fado, em Lisboa,  consideravam da sua inteira exclusividade!? É claro que tanta rambóia teria que acabar mal. Após três chumbos seguidos lá pelas medicinas, e várias discussões epistolares, os pais cortaram-lhe a mesada. Mas o que ganhava em Lisboa não era suficiente para se aguentar em Portugal. Com a ajuda e a cumplicidade da irmã – a minha mãe – regressou a Luanda. 

Regresso a Luanda
T-6 Descolando rumo a Angola

Sempre sob a indiferença dos pais, chegou a ser guitarrista privativo da casa de fados “Muxima”. E as noitadas no “Vilela”, com bacalhau assado na brasa e caldo verde com chouriço, acompanhando os fadistas locais e os que estavam de passagem. Isso nem se conta! Para angariar um sustento extra, trocava muitas vezes a guitarra pela viola, ou pelos tambores – de seu próprio fabrico – e, juntamente com os velhos companheiros de juventude, farra e catuta, lá voltava ele a animar, sempre que a ocasião se proporcionava, os antigos merengues e rebitas.

«Merengues e Rebitas»
Festa Africana, por Neves e Sousa 

Morreu novo. Tuberculoso, segundo disse mais tarde a minha mãe. Ainda não tinha quarenta anos.

E quando tivemos que desocupar o apartamento que mantinha alugado ali para os lados da Samba, reparámos que tinha um poster da Amália Rodrigues à cabeceira da cama. E uma enorme quantidade de pautas e letras de fados que nunca foram cantados.

Orson W. Calabrese
           

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