segunda-feira, 19 de agosto de 2013

2º CAPÍTULO - «UM CONTO», POR AMADEUS SARABAND

Continuação de «Um Conto», de Amadeus Saraband, com a publicação do 2º capítulo. Recordo que a obra do autor é de ficção, e que qualquer semelhança com pessoas ou situações da vida real, será pura coincidência. Falemos do principal personagem desta história - o alentejano Rufino José Potra e suas vivências, que certo dia partiu para terras de África onde acabou por constituir vida e família. Anos mais tarde regressou à sua terra natal, uma pacata vila alentejana não muito distante da vizinha Espanha. Pode ler aqui- «UM CONTO», POR AMADEUS SARABAND», primeiro de quatro capítulos que teve publicação no dia 18 de Agosto de 2013. Boas leituras!
Poet'anarquista

 «UM CONTO», por Amadeus Saraband

2º capítulo

O que verdadeiramente queremos contar – as andanças de um alentejano por outras paragens – começa aqui.

Aos vinte e três anos o Rufino era, como muitos outros rapazes dessa idade, um pouco irreflectido e com muito sangue na guelra. Não deixava que lhe pusessem a pata em cima e, por dá cá aquela palha, arranjava um sarilho de todo o tamanho. Já se vira envolvido nalgumas boas brigas e até se dizia que não era preciso muito para o fazer sair do sério. Os que o conheciam melhor, os que com ele mais de perto lidavam, diziam que era o feitio do pai a vir ao de cima e o fazia destemperar.

Rufino, envolvido numa Rixa
«N’golo», aguarela de Neves e Sousa

Todavia, espantava toda a gente com a assiduidade com que frequentava a igreja.

Ainda em tempo de sua mãe, antes de começar a correr a região, trabalhando aqui e ali, fizera todas as comunhões, crismas e catequeses, revelando uma grande devoção, sobretudo por altura das festas religiosas, transportando os andores e os pendões, quando em dias de procissão. Tinha, até, opas de propriedade pessoal, que usava consoante o tipo de festa religiosa em que participava.

Não se lhe conheceram muitas namoradas, e aquelas que teve, quando os namoros acabavam, não lhe ficavam a querer mal.

No geral, era um rapaz respeitado, pese embora a propensão para não levar o trabalho a muito sério. Não que fosse madraço. Simplesmente, não coalhava emprego.

Resta acrescentar que era um homem muito bem posto, alto, ombros largos e feições correctas, tendo até algumas preocupações na forma como se vestia. Outra herança do pai.

Era este o homem que se apresentou a seu tio na cidade de Luanda, pelos finais de 1944.

O Tio de Rufino Potra
«Camões», por Neves e Sousa

Este, de seu nome Rufino Potra, tal como o sobrinho, tinha sido dos primeiros comerciantes de Luanda a compreender o potencial da cidade, e rapidamente se metera nos mais diversos negócios; para além do estabelecimento que já referimos, tinha negócios de importação e exportação, nomeadamente de vinhos e bacalhau, assim como de óleos alimentares dos mais diversos tipos.

O tio de Rufino, que nunca casou nem tinha qualquer formação académica, era, porém, muito astuto nos negócios, e quando enriqueceu, sentindo-se velho e doente, cansado e muito só, prestou todo o apoio ao sobrinho na administração da sua já larga fortuna, antes de se retirar, definitivamente, para um velho casarão colonial que possuía no bairro das Ingombotas.

Embora vigiado de muito perto pelo tio, conseguiu ganhar-lhe a confiança, e começou a dinamizar os negócios da empresa, ampliando-os muito rapidamente.

Foi nessa altura que conheceu a Ana Milongo.

Ana Milongo
«Mulher Baluba», por Neves de Sousa

Como já dissemos, o Rufino era muito religioso e todos os domingos assistia à missa.

Começou por reparar naquela rapariga negra, alta e desenvolta, com porte atlético, que ocupava sempre um dos lugares mais perto do altar. Reparou, também, que era uma mulher muito bonita, elegante, com um cabelo estilo “afro”, do tipo que, muitos anos mais tarde, viria a ser popularizado por Ângela Davis, outra negra, que do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, viria a dar muito que falar. As pernas altas, cobertas quase até aos pés por um vestido muito sóbrio. Um chapéu largo, do qual pendia um véu, escondia-lhe o rosto quase por completo.

Aquela jovem mulher passou a constituir uma obsessão para ele.

Pese embora a força da sua fé católica não lhe exigir tanto, passou a frequentar a igreja todos os dias, pois descobrira que ela todas as manhãs ia à primeira missa. E como quem está interessado sempre vai descobrindo mais coisas – basta ir fazendo perguntas – conseguiu saber que era sobrinha do sacerdote responsável pela paróquia; que pertencia a uma família católica, da classe média negra de Luanda, se este termo se pode utilizar para definir a situação social que nessa altura se vivia na capital da colónia.

Ela, soube ele mais tarde, também reparara naquele homem que, todos os dias, marcava presença na primeira missa da manhã.

Um dia chegaram à fala.

Rufino Potra e Ana Milongo perto da Igreja
«Igreja de N.S. do Cabo - Luanda»
Aguarela de Neves e Sousa

Quando ela saiu da igreja, acompanhada pelo tio, sacerdote, como já dissemos, ele, muito desembaraçado, disse-lhe que ali ia diariamente porque a sua fé isso lhe ordenava, mas que a presença dela na igreja, também diariamente, não lhe era indiferente. E com o devido respeito lhe perguntava, na presença do tio, que muito considerava, se estaria disposta a falar com ele a fim de se conhecerem melhor. Pedindo desculpa por isso, também lhe disse que já tirara informações da família dela, porque Luanda, afinal, era por essa época apenas uma grande uma aldeia. Na sua posição, precisava de uma mulher a seu lado, precisava de constituir família e começava a fazer-se tarde para casar, estando disposto a dar todas as explicações que ela, ou a família dela, achassem por bem pedir-lhe. Assim mesmo. Tudo de rajada. E que não ficassem dúvidas sobre as suas intenções.

Tio e sobrinha ficaram atónitos com aquele palavreado.

Ela, levantando o véu que lhe cobria o rosto, disfarçando a atrapalhação que por momentos a tolheu, disse que apreciava a maneira frontal como ele se lhe dirigira e que, embora não estivesse habituada a ser abordada daquela maneira, levaria em conta o pedido dele e que falariam num dos dias seguintes.

Falaram. Falaram e começaram a namorar.

Na Luanda de meados dos anos quarenta, essa não era uma situação normal, sobretudo nos meios em que ambos viviam. E não só porque a cidade já se habituara a ver em Rufino o herdeiro duma grande fortuna, mas também porque na família de Ana Milongo, os casamentos sempre se tinham realizado entre pessoas da mesma cor.

Casaram um ano depois; e quem os casou foi o sacerdote, tio da noiva.

Foi então que começaram a nascer os filhos: Primeiro os gémeos, João e Jacinto, assim se chamaram; depois as gémeas: uma se chamou Rosalía, em homenagem à mãe de Rufino, e a outra, Eva, como a primeira mulher.

Ana Milongo com um dos Gémeos
Pintura de Neves e Sousa

Por essa altura já o tio de Rufino tinha falecido, deixando-o como único herdeiro e fazendo dele um dos homens mais ricos da cidade.

Amadeus Saraband

(continua amanhã...)
Poet'anarquista

Sem comentários: